OQÉ: O que é estereótipo a partir da experiência indígena?

Por Felipe Demetri
Povos indígenas: reconhecer a diversidade, abandonar estereótipos
Abril marca a experiência dos Povos Indígenas, em virtude de data celebrativa até pouco tempo conhecida como “Dia do Índio”. A mudança de nome, formalizada pela lei 14.402/2022, mostra avanços na abordagem dos vários tensionamentos historicamente apresentados pelos povos originários, embora estejamos ainda aquém do ideal. A mudança de nomenclatura -- agora Dia dos Povos Indígenas -- não é desimportante, diante de tantas outras demandas urgentes. Ela reflete uma abordagem mais atenta à diversidade que batalha para combater estereótipos e equívocos seculares.
Dentre as tantas violências que as populações indígenas sofreram e ainda sofrem, uma é particularmente insidiosa: a que estipula o que seria um indígena "de verdade”. Há certa ideia de que apenas podem ser considerados verdadeiramente indígenas aqueles que mantêm hábitos não afetados pela colonização, ou seja, que moram nos mesmos territórios e que mantêm sua cultura e sua língua inalteradas desde 1500.
Essa é uma ideia violenta de várias formas diferentes.
Primeiro, desconsidera o forte impacto que a colonização causou nos povos originários, que inclui morte, escravização, perseguição, invasão de suas terras e deslocamento forçado de território, entre outros. É difícil de imaginar regiões deste país que não foram modificadas social e ambientalmente, seja no período colonial, como também no pós-independência e nas campanhas governamentais de interiorização do Brasil (sem mencionar as invasões ilegais que ocorrem diariamente em terras demarcadas).
Segundo, também se desconsidera a própria modificação de hábitos e de cultura naturais a qualquer passagem prolongada de tempo na sociabilidade humana. Pressupor que “indígenas legítimos” seriam aqueles “parados no tempo” retira desses povos a prerrogativa que seus hábitos, língua e modos de subsistência possam ser mudados. Ainda, invisibiliza o ponto anterior, do impacto do modo de vida do colonizador por estas terras.
Terceiro, ao estabelecer o que seria um padrão e ideal de indígena, cria-se uma regra excludente com aqueles que vivem em zonas urbanas ou que, por qualquer outro motivo, não se adequam ao estereótipo do “indígena de verdade”. Aliás, essa própria ideia é em si extremamente problemática, pois apaga a grande diversidade étnico-racial dos povos originários brasileiros, que têm importantes diferenças entre si. De acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), estima-se que existam cerca de 50 milhões de indígenas na América Latina, o que representa 10% da população total da região. São mais de 800 grupos étnicos, falando algo em torno de 600 línguas diferentes. No Brasil, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) revelou 1.652.876 segundo dados preliminares do Censo 2022.
Vale aqui lembrar: indígenas são a categoria racial ao qual esses indivíduos pertencem; os grupos étnicos são os recortes que essa categoria sofre quando observamos suas particularidades, como território compartilhado, idioma, hábitos religiosos etc.
O que os indígenas nos ensinam sobre estereótipos?
A ideia de “indígena de verdade” nada mais é que um estereótipo.
Estereótipos são crenças compartilhadas a respeito de um determinado grupo na sociedade.
Essas crenças podem ter aspectos “positivos” (ênfase nas aspas), por exemplo a visão romântica do indígena ligado à natureza e aos saberes da floresta, assim como componentes negativos, quando o atrela a adjetivações como o selvagem, o preguiçoso etc. O problema dos estereótipos se apresenta quando eles subjugam, aprisionam e violentam agrupamentos com uma finalidade específica, geralmente orientada ao exercício do poder e da dominação de um povo sobre outro. Eles são criados pelos mesmos narradores, o que reduz as possibilidades de ser e existir desses grupos, que são em si mesmos plurais e não cabem a caixas.
Desde a chegada das populações europeias no Brasil, uma série de crenças foi criada e reiterada sobre as populações originárias, usada como justificativa para dominá-las. O crucial dos estereótipos passa pela ideia de inferioridade atribuída a esses povos, como se vivessem no passado ou representassem um estágio de civilização abaixo do padrão europeu (ou seja, mais uma faceta do racismo -- sim, ele atinge todas as populações não brancas!). Dupla violência, portanto: atribui-se aos indígenas a ideia de “não-civilizados”, e quando estão mais inseridos na cultura do outro do que na sua, não são “autênticos”.
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Hoje e cada vez mais populações indígenas de variadas etnias estão ocupando espaços importantes na sociedade brasileira. Um exemplo de destaque são as universidades, em que a sua presença é maior e representativa, embora o desejo é que se amplie. Um fator importante foram as políticas de ações afirmativas e de reservas de vagas, as cotas raciais. Também na política há maior presença: Sônia Guajajara, hoje ministra dos Povos Originários, Joenia Wapichana, primeira mulher indígena a presidir a FUNAI (Fundação Nacional dos Povos Indígenas), além de outras lideranças espalhadas pelo país e que chamam atenção para as demandas dessas populações.
O mercado de trabalho continua sendo um desafio, porém.
Pense em quantos dos seus colegas de trabalho são de origem indígena. Faça o mesmo exercício em outras oportunidades relacionadas. Na verdade, esse é um problema que afeta as pessoas não-brancas como um todo no Brasil, que têm menos acesso à educação e aos postos de trabalho formais, precisando recorrer à informalidade para obter acesso à renda. No caso dos indígenas, de acordo com o Censo 2010, têm ainda alta taxa de desocupação ou estão envolvidos em episódios de trabalho escravo e exploração sexual.
Nesse sentido, é crucial para as empresas comprometidas com DE&I, ao abordar o marcador étnico-racial, considerar a diversidade das populações indígenas e pensar em ações específicas, inclusive em como agregá-las em seu quadro de colaboradores em equilíbrio com o meio e suas especificidades.
Como as organizações podem tratar a causa indígena de modo adequado e não estereotipado?
Separamos algumas dicas:
1# Não caia em estereótipos: evite generalizações quando for falar sobre as populações originárias, mesmo que você considere alguma característica como “positiva”;
2# Reconheça a diversidade: existem diversas etnias diferentes de populações indígenas no Brasil, e além disso, muitos povos vivem e estão integrados ao ambiente urbano sem, por isso, deixarem de ser indígenas;
3# Escute e aprenda: essa é uma dica que vale para todos os marcadores. A melhor forma de avançar em um determinado tema é ouvindo as pessoas diretamente implicadas no assunto, e aprendendo sobre suas histórias e seus desafios.
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