O Legado de John Lewis

Diversitera • Jul 29, 2020

Não tenho a pretensão de ser objetivo ao escrever sobre John Lewis, pois ele é um dos meus maiores ídolos. Vivemos um momento bastante único. Acredito que com exceção da década de 60, do século passado, a questão étnico-racial jamais foi tão debatida. Aquela década foi repleta de acontecimentos e figuras históricas. A Guerra do Vietnã, os Panteras Negras, Martin Luther King Jr, Malcolm X, o Movimento Black Power, e o Movimento Pelos Direitos Civis.


No último domingo, um dos maiores ícones do Movimento Pelos Direitos Civis cruzou a ponte de Edmund Pettus pela última vez. No entanto, acho oportuno fazer um breve relato sobre parte da trajetória de Lewis, bem como da filosofia que ele defendia.


John Lewis nasceu e foi criado na parte rural da cidade de Troy no Estado do Alabama, bem no coração do segregado “Deep South”. Como tinha parentes vivendo no Norte dos Estados Unidos, realizou algumas visitas à região ainda quando criança, e percebeu que lá existiam escolas, empresas e transporte público nos quais brancos e pretos não eram fisicamente segregados. Essa percepção foi fundamental em seus anos formativos, pois deixou dentro de si marcas indeléveis que se tornariam as forças motrizes daquele que viria a ser um dos maiores ícones do Movimento Pelos Direitos Civis.


Quando ele se formou no ensino médio, se inscreveu no Troy State College. Tendo jamais recebido qualquer resposta, decidiu escrever uma carta para Martin Luther King Jr pedindo ajuda. O Dr. King lhe enviou uma passagem de ida e volta, e eles se conheceram. Ali se estabeleceu o contato de duas figuras que viriam a mudar o mundo.


John Lewis deixou o Alabama pouco depois e se mudou para Nashville no Tennessee. Lá ele frequentou o seminário e conheceu o reverendo James Lawson. Lawson era um grande estudioso do pensamento de Gandhi e um filosofo da resistência pacífica. A qual preconiza que, quando deparados com um agressor imbuído de raiva, devemos visualizar aquela pessoa como se um infante fosse, ou até mesmo como um bebê, por mais desprezível que a consideremos. A visualização do agressor dessa forma é o ponto de partida para a transmutação da raiva, do rancor e do ódio em compaixão. É entender que se deixamos nossos corações serem tomados por ódio, ainda que na busca por justiça, estaremos nos rendendo à mesma escuridão que estamos tentando derrotar.


Aos 21 anos, Lewis foi um dos 13 fundadores dos Freedom Riders, um grupo integrado por pretos e brancos que usaram ônibus no Deep South para testar leis que proibiam a segregação no transporte interestadual. Além de serem presos diversas vezes, eles também foram espancados por estarem em ônibus com brancos. Lewis foi preso cerca de 40 vezes. Numa delas, por tentar entrar em banheiros exclusivos para brancos.


Outro momento relevante  na trajetória de John Lewis foi a Grande Marcha de Washington, a mais importante reunião de pessoas pretas no século passado. Ela foi liderada pelo chamado “Big Six”, grupo formado por ele, à época com 23 anos, bem como outros proeminentes ativistas pelos direitos civis dos Estados Unidos: Whitney Young, Roy Wilkins, Asa Philip Randolph, James Farmer, e Martin Luther King Jr. Realizada em 28 de Agosto de 1963, A Marcha de Washington representou um dos marcos do Movimento Pelos Direitos Civis. Naquele dia, em frente ao Memorial Lincoln, Martin Luther King Jr proferiu o icônico discurso “I Have a Dream”.


Pois bem, vocês se lembram da ponte Edmund Pettus mencionada no início do texto? Foi ali que ele e centenas de manifestantes cruzaram o Rio Alabama em 7 de março de 1965 pelo direito ao voto, bem como por outros direitos políticos. Ao cruzarem a ponte, foram covardemente agredidos pela polícia. Cerca de 58 pessoas foram hospitalizadas, e John teve seu crânio fraturado. Milhões de estadunidenses assistiram ao episódio sangrento pela televisão. Aquilo trouxe para a sala de famílias que não encaravam, ou mesmo que não queriam encarar o problema, o sangue, a discriminação, de forma escancarada. O episódio em Selma impulsionou a assinatura Voting Rights Act no verão daquele ano, que proibiu a discriminação racial no voto.


John Lewis, mesmo já muito doente, se manifestou algumas vezes sobre os protestos após a morte de George Floyd. É salutar fazer a separação entre dois grupos bem diferentes. O primeiro grupo é formado pela grande maioria que protestou com dignidade. O segundo é formado por aqueles que foram oportunistas e praticaram saques e agressões. Feita a distinção, John viu as manifestações globais como extensão de seu trabalho, e que estávamos entrando num caminho sem volta.

 

O abuso de direitos constitucionais em público tem consequências profundas. De tal modo que, inclusive a classe média branca dos subúrbios, passou a protestar lado a lado com a comunidade afrodescendente nos EUA. Exatamente como aconteceu nas manifestações de Selma à Montgomery.


Creio que John Lewis nos deixou inúmeras lições. Necessitamos ser mais tolerantes e compassivos. O volume de intolerância presenciado nas mídias sociais durante os últimos meses no que toca o tema racismo, é algo muito triste. Outro ponto importante, é que devemos encarar a realidade. No Brasil é extremamente comum tentarem vender a ideia do mito da democracia racial. Pois bem, é necessário refletirmos sobre a quem esta ideia ilusória serve. Já adianto para o que essa ideia não serve. Ela não serve para resolver o problema. Dizer que não há racismo, é negar o grito de uma grande parte da população, da qual eu faço parte, que teve sua voz calada desde que os primeiros de nós fomos sequestrados da África e trazidos para as Américas. O primeiro passo para a mudança, é reconhecer o que precisa ser mudado.


Conversando com um amigo sobre os episódios recentes de George Floyd, do menino João Pedro, ou melhor...dos Georges Floyds e dos Joãos Pedros, já que são tantos, ele me confidenciou que acreditava que a pandemia e a quarentena poderiam de certa forma tirar o foco destas questões. Eu penso exatamente o contrário. Acho que ambas tiraram muitas pessoas do piloto automático e escancararam algumas mazelas para aqueles que ou não viam, ou não queriam ver. Dentre elas, o racismo, embora muitos ainda se esforcem para não enxergar.


O discurso de mudança deve ser concretizado. Fazer isso é papel de todos nós, já que o racismo estrutural além de ser desumano, é diametralmente oposto à ideia de desenvolvimento econômico e de bem-estar social. Para John Lewis a resistência não violenta não era apenas uma tática para combater o racismo, ou mesmo uma posição política, mas sim um modo de vida. Que tenhamos mais Johns!


Fábio Novaes Vieira

Um indivíduo apaixonado por novas experiências, e com uma curiosidade interminável. Já morou na África do Sul, Argentina, Estados Unidos, Austrália e Polônia. Em 2012 foi aprovado no programa de trainees da Dow, onde conheceu o Marcus e o Maurício. Formado em Administração de Empresas pela FAE Business School (Curitiba), tem experiência no setor automobilístico, serviços jurídicos, tecnologia, serviços, e mercado financeiro.



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