PcD | Cotas e Pessoas com Deficiência

Tamiris Hilario de Lima Batista • Mar 30, 2023
Atualizado: 19 de mai. de 2022

As cotas

O que são cotas e qual a sua lógica?

Cotas são ações afirmativas geralmente destinadas a minorias e maiorias minorizadas, que por sua vez são agrupamentos vulnerabilizados e sem garantia de direitos, o que os coloca em desvantagem em relação aos demais e requer medidas de reparação de desigualdades. Elas são ações estabelecidas a partir do reconhecimento de que somos iguais perante a lei, mas não de fato (na prática). Para alguns, são uma forma de "discriminaçào positiva", quando, por meio delas, estabelecemos critérios para notar as diferenças entre os marcadores que integram a sociedade. Os múltiplos agentes sociais - primeiro, segundo e terceiro setor - movimentam-se, então, para equiparar oportunidades e a evitar a reprodução de erros precedentes, seja por meio de políticas públicas ou outros dispositivos particulares. No caso das cotas, falamos em experiências de reserva de vagas.

Sua raiz vem da Índia, nos anos 1930, prevendo cotas de representação política, cotas de contratação nos serviços públicos e cotas nas instituições de ensino superior aos dalits (casta apartada no país), garantidas pela constituição de 1949. O sistema de castas impedia a sua ascensão social e as políticas de reserva colaboraram para mudar esse cenário. Após a sua experiência, outros Estados seguiram o modelo como a Malásia, a Austrália, a Nova Zelândia, os Estados Unidos, o Canadá e a Colômbia. Nos anos 1960, diante da luta do movimento dos direitos civis estadunidenses, as cotas se popularizaram ainda mais pelo mundo, embora a Constituição norte-americana não preveja explicitamente em seu texto hoje a obrigatoriedade desta política social. No Brasil, elas ganharam força apenas nos anos 2000.

Importante notar que ao contrário do que muitos argumentam, as cotas não são benefícios concedidos em detrimento daqueles não incluídos em seu escopo, ao seu contexto não cabe o discurso meritocrático, tampouco alegações baseadas no decréscimo de qualidade de competências humana (educacional e intelectual, produtividade e capacidade etc.), uma vez que elas são mecanismos de proporcionalidade que, aliados a outros, visam sanar discrepâncias sócio-culturais constatadas por meio de fatos históricos e dados que resultaram em índices de acesso restritivos para alguns.


Tipos de cota

No Brasil, as cotas mais populares são as sociais (destinadas às pessoas de baixa renda), raciais (destinadas aos pretos, pardos e indígenas), PcD (destinadas às pessoas com deficiência) e de gênero (destinada a mulheres cis e pessoas trans). 

São estes os grupos que, por inúmeros motivos, estiveram e ainda estão apartados dos ambientes educativos e laborais, entre outros, o que impede a sua mobilidade social, a redução da desigualdade econômica, o acesso a direitos básicos e oportunidades etc. Quão mais próximos ficarmos da equidade, mais no sentido de um país realmente democrático caminharemos.

O caso das Pessoas com Deficiência no Brasil

O histórico das Pessoas com Deficiência no Brasil

Ao longo de todo o período colonial, elas foram totalmente excluídas de qualquer hipótese de convívio social, sendo relegadas ao aprisionamento domiciliar, nas Santas Casas, asilos ou prisões. Com a chegada da corte portuguesa ao Brasil, algumas políticas passaram a ser destinadas a elas, o que não quer dizer que eram as mais adequadas. É relevante ressaltar que por muito tempo o entendimento da deficiência se pautou no modelo médico, o qual a designava como limitação e doença. Apenas mais tarde a conceituação foi alterada para um modelo biopsicossocial, que a considera também como resultado da influência de fatores sociais e ambientais do meio no qual a pessoa com deficiência está inserida.

Em 1841, por exemplo, um decreto previu a fundação de um hospital destinado ao tratamento, naquele contexto, das 'pessoas alienadas' (aqueles considerados inválidos e loucos). Nos anos seguintes foram fundados o Imperial Instituto dos Meninos Cegos e o Imperial Instituto dos Surdos-Mudos. Como estas, a maioria das ações era assistencialista e pouco efetiva no que diz respeito a direitos políticos e civis. Eram instituições de internação e reabilitação que perpetuavam a visão clínica e a normalização das pessoas com alguma deficiência, segregando-as, por exemplo, com programas de educação especial em que a criança era encaminhada para uma escola específica e distante do convívio com outras crianças, estas sem deficiência. Apenas em 1934 as Pessoas com Deficiência apareceram de maneira indireta no texto constitucional, ali chamadas de 'desvalidas', termo que englobava pessoas em situação de abandono, pobreza e com algum tipo de deficiência.

Foi na década de 1970 que um novo entendimento sobre as Pessoas com Deficiência surgiu, agora com movimentos e organizações voltadas a esse marcador, como é o caso da Coalizão Pró-Federação Nacional de Entidades de Pessoas Deficientes, responsável por planejar estratégias na luta por direitos. Tudo isso com o pano de fundo do processo de redemocratização, oportunidade na qual as entidades exigiram a sua inclusão cidadã no texto final da nova Constituição - antes sequer eram mencionadas como tal.

Hoje, temos: a LBI – Lei Brasileira de Inclusão (lei no 13.146, de 6 de julho de 2015); a CRPD – Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (decreto no 6.949, de 25 de agosto de 2009); e o Código Penal (decreto-lei no 2.848/1940, redação dada pela lei no 10.741, de 2003); entre outras. Além de direitos, são dispositivos que criminalizam quaisquer formas de discriminação contra as PcD.

Apesar disso, há muito a ser feito. Até 2018, por exemplo, pouco mais de 40 mil Pessoas com Deficiência estavam matriculadas no ensino superior de acordo com o Inep, o que representaria apenas 0,5% do total de estudantes brasileiros. Segundo o Caged, quando o assunto é trabalho, apenas 1% delas está empregada.


Direitos das Pcd no Brasil: Lei de Cotas 8.213/91

Em 2021, a lei de cotas para Pessoas com Deficiência completou 30 anos, garantindo hoje emprego a 500 mil homens e mulheres por todo o país - número aquém do ideal se pensarmos que elas compreendem pelo menos 45 milhões de cidadãos brasileiros de acordo com o IBGE, e boa parcela delas representa uma população economicamente ativa.

O direito está previsto no Art.93 da Lei 8.213/91, cuja determinação obriga empresas com mais de 100 empregados a reservar vagas às PcD. A proporção exige que empresas; até 200 colaboradores tenham 2% de vagas; de 201 a 500, 3%; de 501 a 1000, 4%; e mais de 1001, 5%.

Ela garante jornada especial de trabalho, com redução ou flexibilização de horários; igualdade salarial em comparação com os demais funcionários com mesmo cargo ou função; benefícios como vale transporte; estabilidade.

O dispositivo 5.296/2004 lista os tipos de deficiência enquadrados pela Lei de Cotas em categorias: visual (ex: cegueira, baixa visão, visão monocular etc.); auditiva; física (ex: paraplegia, nanismo, amputação ou ausência de membro etc.); intelectual; múltipla (associação de duas ou mais deficiências).

Apesar de sua existência, a Lei de Cotas para Pessoas com Deficiência enfrenta ainda inúmeros desafios, já que, assim como no caso do racismo, o capacitismo é sistêmico, está incrustado na sociedade e nas pessoas, o que perpetua a exclusão e as desigualdades. 

Sobre isso, são pelo menos dois campos observáveis.

Primeiro, sobre sua sustentação e cumprimento legal, é fundamental notar que existe uma ginástica de agentes tentando modificar e flexibilizar este dispositivo 'tão incômodo', na mesma via em que os organismos de acompanhamento e fiscalização são ainda insuficientes. Isto é, quem não a aplica não é fiscalizado e, portanto, responsabilizado por não fazê-lo. As desculpas são muitas, vão do "não há pessoas qualificadas" até o "é muito caro tornar o ambiente de trabalho plenamente acessível". De acordo com estudos da Santos Caos, menos de 10% das empresas cumprem a lei de cotas. 

Segundo, quando executada dentro das organizações, é apenas pro forma (por formalidade) e não uma derivação de uma verdadeira consciência e cultura de diversidade e Inclusão institucional. Como assim? Digamos que as empresas: utilizam as cotas como teto e não como piso; dão um 'jeitinho' de cumprir a reserva de vagas para pessoas com deficiências específicas, as quais, segundo seu entendimento, exigem menor esforço de adaptação institucional; as equipe de contratação (lideranças, gestores e recrutadores) não se preocupam em preparar e desenvolver funcionários; em alguns casos, as PcD são pagas para não trabalhar, permanecendo vinculadas à empresa apenas para manter as aparências para o Ministério Público; entre outros.

Alguns exemplos do capacitismo no mercado de trabalho são simbólicos: é muito comum profissionais com deficiência receberem pedidos das equipes de recursos humanos para enviar laudos médicos antes mesmo do compartilhamento do currículo. Também não é incomum que grandes corporações contratem paratletas e os encaixem como funcionários cotistas, o que nomeia, por sua vez, como patrocínio.

A política afirmativa esvazia, assim, seu significado de geração de oportunidades e inclusão.

Por fim, e talvez o mais importante, o capacitismo que oblitera a inclusão de Pessoas com Deficiência ao não entendê-las como relevantes dentro das organizações tem capilares profundos e precisamos reconhecer isso. A perspectiva biopsicossocial nos ajuda a avançar nesse sentido quando desloca a questão antes restrita ao indivíduo (visão unilateral) e a compartilha com toda a sociedade ao compreender as inúmeras características das pessoas com deficiência como inerentes a diversidade humana e sinalizar que a deficiência pode também não ser apenas das pessoas, mas da sociedade e do meio.


Como sempre, dados são eloquentes

Olhar para os dados pode ajudar na sensibilização e engajamento a seu respeito:
24% das Pessoas com Deficiência têm superior ou ensino médio completo (IBGE)
71% dos gestores acha positivo trabalhar com pessoas com deficiência (STO. CAOS)
63% das Pcd já se sentiram discriminadas em processos seletivos (STO. CAOS)
66% das Pcd já se sentiram discriminadas no ambiente de trabalho (STO. CAOS)
62% das Pcd estão fora do mercado de trabalho (STO. CAOS)
3ª maior dificuldade no recrutamento, seleção e contratação de PcD é a resistência dos gestores (ABRH-SP, da Catho e o I.Social, 2017-2018)

Quer saber mais? Tenha consigo o Identidade PCD, one page com uma síntese de dados sobre as Pessoas com Deficiência: https://materiais.diversitera.com/identidade-pcd-2021 

BIBLIOGRAFIA

FERREIRA, Patrícia; SOUZA, Gabriele. As pessoas com deficiência segunda as constituições brasileiras de ontem e de hoje: políticas públicas, direitos e garantias fundamentais. Revista Via Iuris, nº 20, p. 29-50, 2016.
JÚNIOR, Lanna; MARTINS, Mário (Comp.). História do Movimento Político das Pessoas com Deficiência no Brasil. Brasília: Secretaria de Direitos Humanos. Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência, 2010.
MAIOR, Izabel. Movimento político das pessoas com deficiência: reflexões sobre a conquista de direitos. Inc. Soc. Brasília, vol. 10, nº 2, p. 28-36, 2017.
SANTOS, Wederson. Assistência social e deficiência no Brasil: o reflexo do debate internacional dos direitos das pessoas com deficiência. Serviço Social em Revista, Londrina, vol. 13, nº 1 , p. 80-101, 2010.
TEIXEIRA, Marina. Políticas públicas para pessoas com deficiência no Brasil. Dissertação (Mestrado em Administração de Empresas), Fundação Getúlio Vargas, Escola de Administração de Empresas de São Paulo. 132 f. 2010.
https://blog.handtalk.me/lei-de-cotas-pcds/
https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2021-07/lei-de-cotas-para-pessoas-com-deficiencia-completa-30-anos
https://www.blend-edu.com/lei-de-cotas-legislacao-para-inclusao-de-pessoas-com-deficiencia-pcds/
https://www.politize.com.br/equidade/blogpost/pessoas-com-deficiencia-no-brasil-quais-os-seus-direitos/?https://www.politize.com.br/&gclid=Cj0KCQiA5aWOBhDMARIsAIXLlkdXjBrRfth_4Y3RrcwKwuitJFduyYoBvt1YZp46uXwaDy_Ps7-eRWIaAmlpEALw_wcB
https://www.gadimbrasil.org/copia-sobre-nos
https://www.coalize.com.br/cota-de-deficientes-nas-empresas
https://www.uol.com.br/ecoa/ultimas-noticias/2020/06/25/o-que-sao-acoes-afirmativas-entenda-a-importancia-da-politica-de-reparacao.htm
https://www.politize.com.br/cotas-sociais/
https://www.politize.com.br/sistema-de-cotas-no-brasil/
https://www.deficienteciente.com.br/deficiencia-e-questao-do.html
https://www.deficienteciente.com.br/deficiencia-e-questao-do_06.html
https://pcd.mppr.mp.br/pagina-41.html
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