Raça e Etnia | Diversidade Religiosa, Intolerância e Dados

Tamiris Hilario de Lima Batista • Jan 18, 2022
No mês em que se comemora o Dia da Liberdade de Cultos (07/01), o Dia Mundial da Religião e Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa (21/01), reunimos alguns dados para refletirmos sobre o tema, uma vez que elementos de fé, sistemas filosóficos e religiosos fazem parte dos atributos culturais que integram o território da Diversidade e Inclusão

Segundo o The World Factbook, organizado pela CIA (2012), em número de adeptos, cristianismo, islamismo, hinduísmo e budismo são as grandes religiões do mundo. As pessoas que afirmam não ter nenhum tipo de fé (irreligiosidade, ateísmo) também compõem um grupo relevante. Em números, o Espiritísmo tem aproximadamente 13 milhões de adeptos; Judaísmo, 15 milhões; Sikhismo, 20 milhões; Budismo, 376 milhões; religião tradicional chinesa, 400 milhões; Hinduísmo, 900 milhões; Islamismo, 1,6 bilhões; Cristianismo, 2,2 bilhões. (SuperInteressante/Pew Research Forum on Religion & Public Life e The Association of Religion Data Archives) No Brasil, de acordo com pesquisa DataFolha (2020 / 2.948 entrevistados / 176 municípios), 50% dos brasileiros se autodeclaram católicos, 31% evangélicos, 10% não tem religião, 3% são espíritas, 2% umbandistas, candomblecistas e membros de outras religiões de matriz africana, afro-brasileira ou afro-ameríndia. Entre católicos e evangélicos, a maioria é composta por mulheres negras (pretas e pardas), com renda de até 2 salários mínimos. São, enfim, 191 milhões de religiosos no país. (IBGE)

Apesar da efervescência de perspectivas por aqui, somos um país laico. A Constituição Federal prevê a liberdade religiosa e separa o Estado das Instituições Religiosas, não podendo qualquer governo favorecer, nem interditar atividades de uma organização em detrimento de outras, ou ainda impor uma religião específica aos seus cidadãos ou discriminá-los em razão de não seguirem a doutrina majoritária. Entretanto, na prática, o que se diz é que somos um Estado laico, mas não ateu, uma vez que repartições públicas ainda trazem a cruz cristã, a nossa moeda até 2012 tinha a inscrição "Deus seja louvado", concedemos passaportes diplomáticos aos religiosos católicos e neopentecostais e temos a chamada 'bancada evangélica', com representantes democraticamente eleitos cruzando a fronteira da fé particular com o fazer político público, ferindo o princípio da impessoalidade.

A intolerância religiosa no Brasil e no mundo

Apesar de plural, somos também um país ainda muito intolerante.

Intolerância religiosa é uma conduta de ódio, praticada por pessoas físicas e jurídicas, que visa atingir o outro em razão de sua crença. Pode se manifestar por meio de atos que variam de um xingamento, perpassam a exclusão até a supressão da vida. Ter, não ter ou deixar de ter uma religião não é condição para praticar a intolerância, que ultrapassa a discordância e se traduz em atitudes hostis, discriminatórias e violentas. Brigas, perseguições, prisões ilícitas, torturas, confisco de bens, destruição de patrimônio, incitamento ao ódio, veiculação de notícias inverídicas ou deturpadas, impedimento de ocupação de cargo, cerceamento de liberdades públicas etc. são exemplos.

Ela não é, entretanto, novidade para a humanidade. Ao longo da história, convivemos com inúmeros exemplos. Feiticeiros, bruxas, judeus, protestantes, esoteristas, ciganos, indígenas. Nenhuma cultura escapou dela, que persegue pessoas que vivem em países com forte intolerância religiosa, em que as restrições são maiores quando o assunto é a pluralidade religiosa. 
No Brasil, segundo o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, por meio do Disque 100 – linha de atendimento 24h para recebimento de denúncias de violações de direitos humanos – entre 2011 e 2018, foram registrados 2.862 casos de intolerância religiosa. São Paulo e Rio de Janeiro lideram os registros, seguidos por alguns estados do nordeste e Minas Gerais. As vítimas variam entre as religiões conhecidas. O número mais alto de casos registrados é de violência contra religiões de matriz africana, como a Umbanda e o Candomblé. Justamente por isso, lideranças negras e estudiosos questionam o número de adeptos no Brasil (apenas 2% da população), uma vez que assumi-las publicamente implica em se colocar em um lugar de vulnerabilidade social.
Para religiões indígenas, por exemplo, foram registrados apenas 2 casos. De acordo com a Federação Israelense de São Paulo, de janeiro a agosto de 2019, calculou-se 194 incidentes de antissemitismo no país (Relatório Antissemitismo de 2019). Eles são provenientes de várias fontes, inclusive mídias tradicionais, redes sociais e em expressões com a representação da suástica e inscrições antissemitas pela cidade. Outro caso relevante é o da Islamofobia. Foram inscritas apenas 5 denúncias no canal da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Porém, facilmente encontramos relatos em que, principalmente as mulheres, mais facilmente identificadas nas ruas pelo uso dos hijabs (véus/lenços), são as principais vítimas de violência.

Embora o número de ocorrências e denúncias tenha aumentado nos últimos anos, é ainda um desafio quantificar e qualificar o nível de intolerância praticada no Brasil. Muitos crimes, como o de injúria, são considerados de menor potencial ofensivo e dificilmente terminam com a prisão do agressor. Intimidadas, muitas pessoas também não buscam os pressupostos legais para garantir sua liberdade de culto. Isso oblitera os dados existentes.

A intolerância religiosa e religiões de matriz africana, afro-brasileira e afro-ameríndia

A intolerância religiosa no Brasil não é um assunto recente. Esta prática é exercida desde a instauração do modelo de colonização no Brasil, cuja base católica orientava a catequização forçada dos indígenas que aqui viviam, sobrepondo os preceitos e costumes europeus sobre o conhecimento, cultura e práticas ancestrais dos indígenas brasileiros. Tanto é que, diferentemente de outros países das Américas, o Brasil tem pouquíssimas expressões de religiões indígenas popularizadas em todas as regiões.

Com a instauração do período escravocrata, em que os africanos eram proibidos de praticar o culto às suas religiões, e, posteriormente, com a chegada de imigrantes da Europa e Ásia, esta questão se intensificou, ainda mais. Isto porque, a população da época já era majoritariamente católica, fosse por opção ou por obrigatoriedade, e passou a abrigar liturgias diferentes das tradicionalmente celebradas no país.

Alguns dispositivos legais criminalizaram ou criaram barreiras explícitas para as religiões afro pelo menos até os anos 1970. A perseguição foi sempre vigente e as comunidades não tinham alvará para prática de sua fé.

- 1805 Lei Contra Feiticeiros
- 1830 Lei do 'Pito Pango' proibição da venda e uso de entorpecentes
- 1890 Cultos afro-brasileiros são enquadrados no Código Penal como espiritismo, magia e sortilégios
- 1942 Umbanda e Candomblé são desclassificados como crimes
- 1948 Lei Contra Charlatanismo e Curandeirismo
- 1972 Lei de Alvará para Terreiros

Mais tarde, com implantação do Art. 5º da Constituição de 1988, e, posteriormente, com a criação de ministérios e órgãos de proteção e registro de casos de intolerância religiosa, a expectativa era de chegarmos à era contemporânea apresentado melhorias tangíveis no histórico de um país que se diz laico e tolerante à todas as religiões. Apesar disso, não é o que se verifica atualmente.

Casos para entender o Retrato da Diversidade Religiosa no Brasil nos últimos 10 anos

- De acordo com o Relatório sobre Intolerância e Violência Religiosa no Brasil, foram identificados cerca de 26 assassinatos de pais de santo e lideranças do Candomblé entre 2011 e 2015 retratados por veículos de comunicação. Muitos casos de violência contra terreiros e pessoas do Candomblé não são registrados por diversos motivos, dentre eles, o medo de represália.
- Em julho de 2014, dois evangélicos invadiram a igreja matriz, centro de Sacramento (MG) e destruíram 8 imagens de santos. Um dos autores do crime confessou tê-lo feito por não concordar com a idolatria à estátuas. Uma das imagens, a de Nossa Senhora do Patrocínio do Santíssimo Sacramento, foi tombada como Patrimônio Histórico e aguardava data para receber coroação no Vaticano.
- Em julho de 2015, um homem invadiu a Mesquita Imam Ali, na Rua do Rosário, em Ponta Grossa, nos Campos Gerais, e destruiu móveis, livros religiosos e lustres na sala de orações na madrugada. O caso ocorreu no período de Ramadã.
- Ainda em 2015, foi divulgada pela Empresa Brasil de Comunicação – EBC, reportagem sobre diversos casos de islamofobia vividos no Rio de Janeiro. Na ocasião, uma mulher de 43 anos levou um soco de um homem após ser xingada de terrorista no centro da cidade. Outro caso, foi o de um trote universitário, onde uma estudante muçulmana teve seu hijab queimado, o que resultou em queimaduras em seu couro cabeludo.
- Há relato de muçulmanos que são expulsos de transportes públicos, exames nacionais, que são abordados em aeroportos e em processos seletivos. Isto porque, não respeitam o uso do véu e, também, o intervalo para as orações. Além disso, há um forte movimento de pessoas praticando islamofobia pela internet. 
- Dentre centenas de casos de violência, há o caso da Kayllane Campos, que em 2015, com apenas 11 anos, levou uma pedrada na cabeça quando retornava para casa após um culto de Candomblé.
- Em outubro de 2017, o túmulo do médium Chico Xavier foi alvo de vandalismo em Uberaba (MG). Na ocasião, o vidro de proteção do Busto de Chico Xavier foi apedrejado. Esta foi a segunda vez em um intervalo de dois anos em que a imagem sofreu ataques.
- Em 6 de fevereiro de 2019, em rede nacional, no reality show Big Brother Brasil, a concorrente Paula von Sperling Viana fez uma série de comentários depreciativos sobre outro concorrente que era seguidor de uma religião afro-brasileira. A imprensa informou que o DECRADI concluiu que seus comentários eram discriminatórios, acusando-a de causar injúria devido à discriminação. 

Algumas leis que versam sobre a intolerância religiosa são:

CF - Art. 5º, inciso VI - “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias.”

CF - Lei no 7716/89 - Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. “Impedir ou obstar o acesso de alguém, devidamente habilitado, a qualquer cargo público públicos”; “Negar ou obstar emprego em empresa privada”; “Recusar ou impedir acesso a estabelecimento comercial, negando-se a servir, atender ou receber cliente ou comprador”; “Recusar, negar ou impedir a inscrição ou ingresso de aluno em estabelecimento de ensino público ou privado de qualquer grau”; “Impedir ou obstar, por qualquer meio ou forma, o casamento ou convivência familiar e social”; “Fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo”; entre outros artigos.

CP - Art. 140 e Art. 208, com os acréscimos das Leis 9.459/97 e 10.741/03 - “ultraje a culto e impedimento ou perturbação de ato a ele relativo” (...) “escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso.”

Lei 11.635/07 – instituiu 21 de janeiro como o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa a ser comemorado, anualmente, em todo o território nacional. A estipulação dessa data foi uma homenagem a Gildásia dos Santos, a Mãe Gilda, do terreiro de Candomblé Axé­Abassá de Ogum (Salvador – Bahia). A religiosa foi acometida de enfarte quando viu sua foto estampada em jornal, trazendo a manchete: “Macumbeiros charlatões lesam o bolso e a vida dos clientes”.

Lei 12.288/10 – “Estatuto da Igualdade Racial” - Art. 24 - “direito à liberdade de consciência e de crença e ao livre exercício dos cultos religiosos de matriz africana compreende: prática de cultos, a celebração de reuniões relacionadas à religiosidade e a fundação e manutenção, por iniciativa privada, de lugares reservados para tais fins; a fundação e a manutenção, por iniciativa privada, de instituições beneficentes ligadas às respectivas convicções religiosas; a produção, a comercialização, a aquisição e o uso de artigos e materiais religiosos adequados aos costumes e às práticas fundadas na respectiva religiosidade, ressalvadas as condutas vedadas por legislação específica; a produção e a divulgação de publicações relacionadas ao exercício e à difusão das religiões de matriz africana; a comunicação ao Ministério Público para abertura de ação penal em face de atitudes e práticas de intolerância religiosa nos meios de comunicação e em quaisquer outros locais”

BIBLIOGRAFIA
https://anajure.org.br/intolerancia-religiosa-no-ordenamento-brasileiro/
https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/01/13/50percent-dos-brasileiros-sao-catolicos-31percent-evangelicos-e-10percent-nao-tem-religiao-diz-datafolha.ghtml
https://super.abril.com.br/coluna/superlistas/as-8-maiores-religioes-do-mundo/
https://direito.mppr.mp.br/arquivos/File/RelatorioIntoleranciaViolenciaReligiosaBrasil.pdf
https://www.brasildefato.com.br/2020/01/21/denuncias-de-intolerancia-religiosa-aumentaram-56-no-brasil-em-2019
https://agora.folha.uol.com.br/sao-paulo/2019/08/cresce-registro-de-crimes-de-intolerancia-religiosa-na-capital.shtml
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