OQÉ: O que é cisgeneridade e como ela pode ajudar na inclusão de pessoas trans?

Ana Paula Hining • Jun 07, 2022
Atualizado: 8 de nov. de 2022

Cisgeneridade é o termo que se dá àquelas pessoas cuja identidade de gênero - como a pessoa se reconhece e identifica - coincide com o sexo que foi atribuído no nascimento. Ou seja, é aquela pessoa que, por exemplo, ao nascer, foi designada mulher e, ao longo de sua vida, segue se identificando dessa forma. Até alguns anos atrás (e ainda hoje em muitos ambientes) chamavam-nas de mulheres/homens "de verdade”, "biológicos”, “normais”, em contraposição às pessoas trans.

No entanto, essas nomenclaturas são problemáticas: se mulheres e homens cisgêneros são “normais”, “biológicos” e “de verdade?”, o que seriam as pessoas trans? Anormais, não biológicas e falsas? Quando nos referimos às pessoas cis como aquelas cujo gênero é “verdadeiro”, estamos, implicitamente, dizendo que o gênero das pessoas trans é artificial, uma falsificação ou uma enganação.

Nesse sentido, o termo “cis” permite colocar o “normal” sob análise crítica. Isto é, aquela expressão de gênero que foi convencionada socialmente como a forma normal, correta e ideal, na verdade, é apenas mais uma possibilidade de expressão de gênero dentre outras que também são legítimas. Utilizamos as palavras “cis” e “trans”, portanto, em um exercício de desconstrução de uma disparidade de poder. Afinal, como poderíamos analisar as relações de poder entre os grupos se não lhes damos um nome? Sobre isso, Amara Rodovalho Moira, travesti e pesquisadora, escreve:
"Eis novamente o ponto: existimos, e em função desse não-nós. E, se existimos, com direito a nome inclusive, as pessoas que não são nós (e a partir das quais fomos nomeadas “trans”) talvez precisassem de um nome também, um nome não que lhes desse existência (afinal, quem cogitaria duvidar que, por não terem nome, inexistem?), mas sim um que explicitasse a razão de nos terem definido enquanto quem cruza, transpassa (trapaça?), transgride uma certa linha, a saber, aquela que separa homem de mulher. A nomeação daquilo que seria não-trans, não-nós, surge duma necessidade muito nossa, de percebermos com cada vez mais clareza que a insuficiência daquilo que dizem que somos tem que ver, sobretudo, com a recusa em se situarem, em dizerem quem são, ao falarem de nós, dado que são essas as pessoas majoritariamente que falam de nós, por nós: se lhes damos um nome, “cis”, é para entender melhor do olhar que primeiro nos concedeu existência, do olhar que, hoje, começa a nos deixar existir." (Rodovalho, 2017a, p. 367)
A utilização do termo cisgeneridade para se referir às pessoas que não são trans também converge com um esforço de questionar a compreensão do gênero como um atributo essencial, entendendo-o como uma construção social. Isso pode parecer difícil de entender e até um pouco abstrato, mas vamos colocar da seguinte forma: quando nascemos, a cada um de nós é atribuído um gênero, e junto dessa atribuição (que é realizada por um conjunto de instituições e discursos - família, medicina, biologia, do Estado, religiões) vem uma série de expectativas sobre o que é ser menino ou menina. “Meninas/mulheres são delicadas, educadas, são mais propensas às atividades de cuidado, são mais sensíveis, menos racionais…” “Meninos/homens são mais agressivos, desleixados com aparência e limpeza, mais aptos às atividades entendidas como racionais como matemática, engenharia, política…”, por aí vai. Dizemos, portanto, que gênero não é um atributo essencial, ou seja, algo que alguém, naturalmente, é. É o próprio discurso sobre o gênero que produz essas ideias de homem e mulher com as quais nós vivemos e negociamos para construir nossas identidades.

Nesse sentido, a palavra “cis” sugere que as pessoas cisgêneras também passam por um processo de construção do seu gênero, ainda que ele seja naturalizado, ou seja, interpretado como algo dado, natural. Pessoas trans, aos olhos da sociedade, muitas vezes são vistas como “farsantes do gênero”, isso fica muito explícito quando alguém diz algo como “ela não é mulher de verdade”, ao se referir a uma travesti, por exemplo. O argumento por trás do uso da palavra cis para se referir às pessoas não-trans vai no sentido de demonstrar como todo gênero é uma construção social. Todos nós, invariavelmente, passamos por processos de negociação com as normas de gênero e produzimos nossa identidade a partir delas. A grande questão é que para as pessoas cisgêneras esse processo é invisibilizado, é visto como algo “natural”. Por isso, fala-se em cisnormatividade: as normas que circunscrevem as possibilidades do que é um gênero normal ou ideal baseiam-se na cisgeneridade como ponto de referência do que é bom, correto e padrão.
Para entender isso, basta analisar a forma como a ciência, a medicina e a sociedade em geral olharam para pessoas trans. É comum ouvir questionamentos como: “mas qual a origem da transexualidade? É uma ‘condição’ biológica, mental? Talvez algo de errado que ocorreu na socialização dessas pessoas quando eram crianças…”. Essas questões implicitamente sugerem que a transexualidade seria um desvio do caminho normal, correto, ideal e saudável. Ninguém olha para uma mulher ou homem cisgêneros e questiona “qual a origem dessa ‘condição’?”, precisamente porque o gênero das pessoas cis é naturalizado.

Portanto, o uso da terminologia cis é de extrema importância para a inclusão plena de pessoas trans na sociedade. Mais do que a inclusão dessas pessoas em espaços que lhes foram negados e acesso à direitos, é preciso transformar a cultura cisnormativa que impede com que pessoas trans tenham sua existência considerada legítima.

Sugestões de leitura

(1) O cis pelo trans - Amara Moira
https://www.scielo.br/j/ref/a/Ct6B9JMscBjgK4DZgjXQkgn/?lang=pt
(2) Por inflexões decoloniais de corpos e identidades de gênero inconformes: uma análise autoetnográfica da cisgeneridade como normatividade - Viviane Vergueiro
https://repositorio.ufba.br/bitstream/ri/19685/1/VERGUEIRO%20Viviane%20-%20Por%20inflexoes%20decoloniais%20de%20corpos%20e%20identidades%20de%20genero%20inconformes.pdf
(3) Cisgênero nos discursos feministas: uma palavra "tão defendida; tão atacada; tão pouco entendida" - Beatriz Bagagli
https://www.iel.unicamp.br/arquivos/publicacao/Cisgenero-nos_discursos_feministas_uma_palavra_tao_defendida_tao_atacada_tao_pouco_entendida.pdf
(4) Toda cisgeneridade é a mesma? Subalternidade nas experiências normativas - Helena Vieira 
https://www.geledes.org.br/toda-cisgeneridade-e-a-mesma-subalternidade-nas-experiencias-normativas/
(5) Cisnorma e articulações de saber-poder na Psicologia: uma mirada a partir do processo transexualizador - Jéssica Fuchs
https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/215357/PPSI0861-D.pdf?sequence=-1&isAllowed=y
Por Tamiris Diversitera 09 abr., 2024
Descubra tudo sobre o sistema de cotas e heteroidentificação no Brasil com nosso dossiê detalhado. Explore as origens, benefícios, e desafios das cotas raciais e sociais, além de entender a legislação e as revisões recentes. Ideal para estudantes, educadores e interessados em políticas de inclusão.
Por Tamiris Diversitera 07 mar., 2024
Explore a influência da meritocracia no ambiente corporativo através de uma análise crítica. Este artigo oferece uma visão profunda sobre como a meritocracia afeta a igualdade, equidade e inclusão nas organizações, destacando os desafios sociais e as barreiras invisíveis que moldam o sucesso e o fracasso
Por Tamiris Diversitera 26 fev., 2024
Este artigo destaca a importância de reconhecer a diversidade cultural dos povos indígenas no Brasil, combatendo estereótipos e promovendo uma verdadeira inclusão em todos os setores da sociedade. Explore as conquistas recentes e os desafios persistentes enfrentados pelas comunidades indígenas
Mais Posts
Share by: