OQÉ: O que é acessibilidade

Feb 26, 2024

Como expandir o conceito de acessibilidade para além das Pessoas com Deficiência?

Vamos falar de um aspecto que vem ganhando relevância no debate público recentemente? A questão do uso de banheiros de acordo com a identidade de gênero, no caso daqueles espaços de uso coletivo, o que é especialmente relevante quando pensamos no ambiente de trabalho. Ao contrário do que se imagina, isso tem tudo a ver com uma palavrinha conhecida no universo das Pessoas com Deficiência, mas que cabe a esse contexto: a acessibilidade.

A luta pelos banheiros: pessoas trans e a afirmação de um direito

Ainda há muitas dúvidas que permeiam essa questão, então é oportuno trazer alguns esclarecimentos a partir de dados e informações, pois estamos falando de um grupo - as pessoas trans - discriminado e excluído socialmente, cujo percurso é marcado por fake news e notícias sensacionalistas, as vezes criminosas, que pouco nos ajudam a compreendê-la.

Primeiro, precisamos ser pragmáticos e garantistas. O uso de banheiros públicos de acordo com a identidade de gênero é fundamental para o bem-estar de pessoas trans. Pessoas cis tomam esse direito como dado, esquecendo-se ou ignorando que é constitucionalmente previsto que todos tenhamos acesso à saúde (Art. 196) e a uma vida digna (Art. 5).

Segundo, sequer refletimos sobre a existência e finalidade de uma coisa tão corriqueira, certo? Porém, para algumas populações ela é evidência seu lugar de marginalização na sociedade. Pessoas trans relatam dificuldades e constrangimentos na hora de acessar esses espaços. Por isso, a conversa sobre o uso dos banheiros é também sobre acessibilidade, observando o conceito de forma mais alargada. Ambientes de trabalho devem prezar pela acessibilidade de todos, garantindo o direito básico de ser autêntico nesses espaços, em que o respeito deve ser um alicerce fundamental.

Parêntesis: o futuro é acessível

Acessibilidade é também uma questão de justiça social, a supressão de barreiras extrapola a agenda PcD e tecnologias assistivas apontam para o futuro. Tudo isso é campo de oportunidades para as organizações que podem rever produtos, recursos, metodologias, estratégias, práticas e serviços. 

Acesso é sobre garantia de direitos básicos, como educação, saúde de qualidade, renda e até entretenimento. Construí-los, sobretudo para as organizações, deve ter o sentido alargado a partir do entendimento de que são os meios para que as pessoas possam viver dignamente e em sua plena potência. 

Para tanto, devemos derrubar barreiras, sejam elas físicas ou atitudinais.

Uma lupa sobre a identidade de gênero

Há alguns aspectos que precisam ser compreendidos para que possamos melhor compreender o uso dos banheiros de acordo com a identidade de gênero.

Comecemos por ela: a identidade de gênero se refere ao gênero com a qual uma pessoa se identifica. As pessoas podem ser cisgêneras, ou seja, pessoas que se identificam com o mesmo gênero ao qual foram atribuídas na nascença; temos também as pessoas transgênero, aquelas que que identificam com gênero diverso daquele atribuído na nascença. 

Elas são múltiplas e têm vivências plurais, e suas experiências estão para além do aspecto médico, hoje ultrapassado para dar lugar a um olhar mais amplo e acolhedor sobre as suas idiossincrasias. Isso porque, antigamente, o direito de mudança de nome, por exemplo, estava associado ao processo de redesignação sexual e a um enquadramento dentro da Classificação Internacional de Doenças. Felizmente uma decisão recente do STF, de 2018, mudou esse entendimento: não é mais necessário, juridicamente, para a mudança de nome no registro civil, qualquer tipo de cirurgia, laudo ou decisão judicial específica. 

Isso respeita um aspecto importante: cada transição de gênero será diferente e particular, pois fundamentalmente estamos falando de pessoas com trajetórias e experiências diferentes, que não cabem a rótulos cristalizados e inflexíveis. Pessoas trans, podem ter, aliás expressões de gênero mais ambíguas, que não responderão ao binarismo com o qual o mundo cis está habituado. Daí a necessidade de desenvolver e estabelecer uma cultura de respeito a sua dignidade, e que abrace as muitas formas de ser e existir que existem na nossa sociedade. Dizer não a questão dos banheiros e negar a elas direitos é seguir promovendo a sua marginalização.

Vamos superar a Era das Fake News?

A questão dos banheiros virou objeto de fake news (notícias falsas) e de pânico moral, que é uma amplificação ou distorção de algum medo na sociedade. Essa histeria que se cria está a serviço do que ou de quem? Ela nos ajuda a avançar nas pautas antidiscriminatórias ou fortalece um imaginário preconceituoso?

Num passado recente, por exemplo, notícias falsas que circularam em diferentes canais de informação sugeriam que pessoas trans reivindicavam “banheiro unissex”, sendo que esta não é uma demanda dessa população. A busca delas mira o uso do banheiro de acordo com a identidade de gênero autodeclarada. 

Também são comuns rumores de que mulheres cis possam ser alvo de violência ou importunação por parte de pessoas trans nos banheiros públicos. Sobre isso, os dados mostram que o ambiente onde as mulheres cis estão mais em risco é, infelizmente, em casa: segundo o 'Relatório Sem Deixar Ninguém Para Trás', 63,16% dos estupros acontecem em seus lares, com algum conhecido. Esses rumores também distorcem a violência que mulheres trans sofrem: dados do SUS sobre notificações de violência contra LGBTs no Brasil entre 2015 e 2017 mostram que 46% das vítimas foram mulheres transexuais ou travestis.

"Ah, mas então homens cis poderiam então usar roupas femininas para adentrar banheiros públicos e fazê-lo?". Até podem, embora sejam casos isolados. Mas daí vale refletir: será mesmo uma questão para pessoas trans pensarem? Ou isso pouco tem a ver com elas, e cabe ao grupo cisgênero rever-se e autoregular-se diante de um comportamento criminoso? Ou ainda, repensar os espaços para que se tornem seguros para todos?

O que diz a lei brasileira?

Não há leis que tratem especificamente sobre pessoas trans no Brasil, embora haja um caso a ser julgado no STF sobre essa matéria em nível de recurso extraordinário (RE 845779), podendo causar efeito de repercussão geral. Contudo, é sempre oportuno lembrar que:

– Como já dito, a Constituição Federal, no Art. 3º, estabelece como um dos objetivos da república: “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”;

– O Ministério Público do Trabalho, na nota técnica 02/2020 de sua Coordenaria da Promoção de Igualdade e Eliminação da Discriminação do Trabalho, orienta que empresas, órgãos públicos e empregadores em geral, devem seguir alguns princópios para a proteção do público LGBTQIAP+, entre eles a garantia ao nome social e, também, o uso de banheiros conforme a identidade de gênero; 
– A Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, em sintonia com a lei 9.394/1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), determina a garantia e a permanência de pessoas travestis, trans e de qualquer identidade de gênero em qualquer espaço social nos sistemas e instituições de ensino (o que inclui os trabalhadores locais);

– A legislação trabalhista no Brasil veda qualquer prática discriminatória e prevê multa administrativa às empresas que não a respeitarem.

– O Brasil é um importante sujeito internacional, tendo ratificado a Convenção 111 da Organização Internacional do Trabalho sobre 'Discriminação em Matéria de Emprego e Ocupação', que versa sobre Direitos Humanos e reconhece a necessidade de proteção as pessoas LGBTQIAP+.

O que minha organização pode fazer?

Cada vez mais o mercado de trabalho vem se adaptando para incluir pessoas diversas nos seus quadros, incluindo pessoas trans. Isso demanda a criação de um ambiente inclusivo para todos: é preciso que essa inclusividade seja fomentada na forma de ações concretas. 

A questão do uso do banheiro, na verdade, é apenas um ponto nevrálgico de tensões que está relacionado a outros aspectos fundamentais, como o respeito, a dignidade, o letramento em aspectos de diversidade, entre outros.

Separamos algumas iniciativas para tratar essa questão na sua organização:

> Primeiro, incluir pessoas trans no ambiente de trabalho requer que sejam adotadas algumas políticas de respeito, que incluem a garantia do uso de banheiros de acordo com a identidade de gênero. Essa política precisa estar concatenada com outras que visam garantir o respeito e o bem-estar dessas pessoas, como a garantia do respeito ao nome social, que é o nome pelo qual a pessoa trans deseja ser chamada e que possui a mesma proteção concedida ao nome de registro. As empresas também precisam adequar seus sistemas para prever essa situação e evitar constrangimentos. 

> Segundo, treinamento e sensibilização dos funcionários. Apesar de termos já muita informação disponível, isso não significa qualidade, além de que muitas pessoas ainda desconhecem temas ligados à diversidade ou têm dúvidas que podem ser sanadas por especialistas. Treinamentos e sensibilização são medidas efetivas para aumentar o letramento e, consequentemente, o respeito. 

> Terceiro, invista em recrutamento de pessoas diversas. Um passo crucial para criar um ambiente mais igualitário é tornar sua empresa mais diversa. Isso envolve repensar os métodos de recrutamento e seleção. Também envolve uma atitude mais proativa em relação à comunidade trans, como parceria com organizações que lidam com a causa LGBTQIAP+. 

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Felipe Demetri | Líder de Projetos
Psicólogo e Mestre em Psicologia com ênfase em Processos de Subjetivação, Gênero e Diversidades (UFSC). Doutorando em Psicologia na área de Psicologia Social e Cultura e pesquisador do Núcleo Margens - Modos de vida, família e relações de gênero. Pesquisa nos seguintes temas: gênero, sexualidade, subjetividade, diversidade. É autor do livro "Judith Butler: Filósofa da Vulnerabilidade" (ed. Devires, 2018). Tem atuação profissional, a partir da psicologia, na área de gênero, diversidade e masculinidades.
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